Modelos e a formalização standard de teorias científicas
A leitura desta semana foi SUPPES, Patrick. Representation and invariance of scientiic structures. Stanford, CA: CSLI Publications, 2002, páginas 17 a 27. Estas páginas incluem a discussão de Suppes a respeito do significado de modelo em ciência (Seção 2.1) e os primeiros itens da Seção 2.2, em que é apresentada a dita formalização standard das teorias científicas, que as representa dentro de uma lógica de primeira-ordem (predicados).
Texto do Suppes, como o livro que o abriga, é uma retomada de vários temas e termos presentes em sua obra. Trata-se de um texto ao mesmo tempo expositivo e programático.
O significado de modelo na ciência
Suppes apresenta alguns usos da palavra modelo:
- Modelo como representação física: modelo de trem;
- Modelo como conjunto de especificações de um padrão de design: e.g., um governo-modelo como um governo que atende a um conjunto de especificações que se julga que um governo ideal deva satisfazer;
- Modelo como um exemplar de um determinado tipo: e.g., o modelo de um Major General moderno.
Para Suppes, o uso de modelo enquanto exemplar é raro em ciência, mas a ideia de modelo como especificação de projeto abstraída de detalhes seria mais próxima do uso predominante.
Noção matemática de modelo (Tarski 1953): “A possible realization in which all valid sentences of a theory $T$ are satisfied is called a model of $T$.” De forma grosseira, uma realização possível é uma entidade de teoria dos conjuntos de tipo adequado: por exemplo, uma realização possível da teoria de grupos seria qualquer par ordenado em que o primeiro membro é um conjunto não-vazio e o segundo membro é uma operação binária sobre esse conjunto. Um modelo, nesse caso, seria uma realização possível em que a teoria é satisfeita. A teoria seria uma entidade linguística (conjunto de frases ou proposições), enquanto o modelo é em geral uma entidade não-linguística. Na discussão em sala, traz-se a visão de que a lógica atuaria como uma metalinguagem: a lógica não se referiria diretamente ao mundo, mas a modelos construídos, e destes sim pode se falar em relação ao referente externo.
Importância de lembrar que o conceito de Tarski de verdade como correspondência1 (visão correspondencial de verdade2) é pensado em linguagens formalizadas, e a sua extensão a domínios mais fluidos como os da linguagem natural, ainda que possível (ver, e.g., o trabalho de Donald Davidson), não é imediata ou trivial.
Discussão dos exemplos
Para analisar o significado de modelo em diversos campos científicos, Suppes traz vários trechos de obras destes campos. Em cada citação, este autor destacou em itálico todos os usos da palavra modelo.
Para Suppes, apesar de pequenas diferenças terminológicas, o conceito de modelo que Tarski traz poderia ser usado como um conceito fundamental em todas as ciências abordadas. Estaríamos diante de um conceito unificado de modelo na matemática e nas ciências empíricas, que é, contudo, usado de formas distintas nas diferentes disciplinas: os pesquisadores perguntariam diferentes tipos de questão a depender de seus interesses, mas estariam se referindo a um mesmo conceito.
Os comentários de Suppes, bem como minhas eventuais questões e elaborações, foram incluídos em meio às partes comentadas.
Citações das ciências físicas
Em ramos mais estabelecidos da física, para Suppes, não existiria muita propensão ao uso da palavra modelo, já que haveria uma linguagem que funde teoria, experimentos e senso comum. Em ramos menos consolidados, a palavra modelo seria mais usada, carregando a noção de estarmos diante de uma simplificação grande que responde apenas por alguns aspectos mais salientes. Haveria, também aqui, uma constante interação entre os usos de modelo como entidade não-linguística e modelo como teoria.
Lindsay e Margenau (1936, pp. 390–391)
Autores discutem uma visão do átomo como um núcleo pesado e de carga positiva em torno do qual orbitam elétrons de carga negativa e que particle-like. Isto forneceria um mecanismo para explicar a emissão de luz, mas esta explicação encontraria obstáculos na prática:
- Um átomo em que os elétrons girassem continuamente deveria emitir luz o tempo todo, o que não condiz com os dados experimentais;
- Este modelo não poderia explicar a ocorrência de linhas espectrais de uma faixa muito estreita de frequências;
- O elétron radiante deste modelo perderia energia, o que o levaria a ter uma órbita espiral que colidiria com o núcleo;
- O modelo não conseguiria explicar a nitidez das linhas espectrais.
Modelo, aqui, parece-me um título conferido a uma estrutura que oferece uma candidata a explicação de um fenômeno. Em particular, este modelo teria falhado em explicar as observações experimentais.
Para Suppes, a teoria orbital do átomo é apresentada neste trecho como uma teoria, e a questão sob análise seria se uma possível realização desta teoria constitui um modelo de uma dada teoria, ou seja, se modelos (aqui não no sentido lógico, presumo) de uma teoria orbital corresponderiam aos dados obtidos de experimentos físicos com fenômenos atômicos.3
Suppes traz à tona que a definição formal de um modelo como uma entidade conjuntista não exclui o ponto de vista de modelo como entidade física que os físicos costumam preferir. Este modelo físico poderia ser entendido como simplesmente definindo o conjunto de objetos no modelo conjuntista. Por exemplo, tomando a formalização típica da mecânica clássica que Suppes traz no capítulo 7, seria possível tomar um modelo do sistema solar em que o conjunto de partículas seja o conjunto de corpos planetários, ou, de maneira mais abstrata, de seus centros de massa.
Ou seja, os objetos, relações e funções tipicamente considerados como parte de um modelo físico poderiam ser entendidos como formando conjuntos de base para o modelo conjuntista, que seria nesse sentido mais fundamental que o modelo físico. Para apoiar este ponto, Suppes traz o exemplo dos esforços de Kelvin e Maxwell para encontrar um modelo mecânico dos fenômenos eletromagnéticos, busca essa que pode ser expresso em uma forma conjuntista (e, inclusive, a teoria matemática de Maxwell se mostrou mais duradoura que seu modelo físico).
Na discussão em sala, surgiu o fato de que, apesar das inconsistências internas e externas existentes no modelo, o modelo de Bohr teve um histórico impressionante de predições corretas, como a predição de linhas espectrais corretas e não borradas. O problema aqui talvez resida em se pensar o modelo de forma muito literal, em vez de ler suas sentenças de forma mais fuzzy.
Khinchin (1949, p. 4)
Os modelos de mecânica estatística de Gibbs não seriam um estabelecimento direto de teorias físicas.
Para Suppes, a descrição de Khinchin de como os modelos de Gibbs não recorrem diretamente à realidade física é simpática à visão conjuntista de modelos, ainda que (tal como Doob mais abaixo) borre a distinção entre teoria e modelo. O nível de abstração da teoria de Gibbs forneceria um bom exemplo para a aplicação da ideia conjuntista de modelo, já que está removida da fisicalidade ao ponto de afastar tentações de que a mecânica estatística seria o modelo físico do universo.
Einstein (1934, pp. 168–169)
No primeiro uso do trecho, modelo parece-me referir a uma representação matemática.
Einstein e sua crença na possibilidade de um modelo da realidade como uma teoria que representa os eventos em si e não, ao contrário do que propõe a teoria quântica dominante à época, uma representação da probabilidade da ocorrência destes eventos.
Modelo teórico aparece como algo distinto de um modelo matemático. Einstein mantém a crença na possibilidade de um modelo teórico que seja genuinamente atomístico (e não na base de uma interpretação particular) mesmo diante da falta de um modelo matemático de localização das partículas. Na discussáo em sala, levantou-se que estaríamos diante de um espaço abstrato, sem um rebate imediato no que se alcança pela empiria. O recurso à probabilidade seria, na visão de Einstein, um reflexo da incompletude da teoria.4
Duas noções de modelo. Primeiro uso, modelo como uma descrição no sentido forte, com compromisso ontológico de descrever as coisas como são. Depois, modelo como uma representação teórica que relaxa algum constritor.
Citações das ciências biológicas
Para Suppes, ambos os usos de modelo abaixo não fogem do conceito de modelo como uma simplificação de fenômenos reais complexos.
Portugal e Cohen (1977, p. 204)
Modelo como uma das formas de aprender sobre a estrutura tridimensional de uma substância, contraposto a ferramentas físicas, que dependem de propriedades da matéria para obter informações sobre a localização relativa dos átomos nas moléculas.
Um modelo da molécula seria construído a partir de modelos em escala dos átomos nela presentes, com valores precisos para os ângulos e distâncias de ligação. As informações básicas destes parâmetros viriam de medições físicas.
Discussão da sala: observação como anterior ao modelo. Modelo pretende-se uma descrição do sistema, mas sua construção já embute informações sobre o sistema, em uma via de mão dupla.
Kaufmann (1982, p. 28)
Menção à atividade de modelagem: Kaufmann fala que modelou a dispersão utilizando apenas a transposição, ignorando outras questões cuja existência reconhece.
Impossibilidade de destruição de um locus genético aparece como uma simplificação presente no modelo.
Cinética não é discutida em mais detalhes ali, pois o propósito do modelo simples apresentado é examinar a arquitetura regulatória depois de muitas instâncais de duplicação e transposição.
Citações das ciências sociais
Destaca Suppes que o uso de modelo em econometria corresponde ao que os lógicos chamariam de uma classe de modelos, e a noção logicista de modelo é chamado de estrutura em econometria.
Arrow (1951, p. 21)
“Thus, the model of rational choice as built up from pair-wise comparisons does not seem to suit well the case of rational behavior in the described game situation.”
Modelo como uma construção em uma situação de jogos.
Para Suppes, o uso de modelo por Arrow reflete a presença de uma simplificação extrema, já que a teoria proposta fornece apenas uma esquemática dos fenômenos de que se ocupa.
Simon (1957, p. 116)
Modelo como uma construção. Para Suppes, esta construção de modelos a partir dos experimentos seria entendida, do ponto de vista lógico, como a construção de uma teoria quantitativa que corresponda às as ideias intuitivas presentes na teoria original.
Um modelo, em Simon, é algo que tem variáveis, que no caso representam médias ou agregados para membros de um grupo. Esta agregação poderia ser feita, por exemplo, a partir de uma escala, e mesmo as variáveis intervenientes, não medidas diretamente, poderiam ser percebidas como médias.
Bush e Estes (1959, p. 3)
Modelos matemáticos como formalização de sistemas teóricos de comportamento.
Dados são apresentados como elemento relevante para modelos. Para Suppes, a ideia de um modelo como algo que se ajusta aos dados tem uma conexão próxima com o conceito logicista de modelo. (ALMADA: a estimação de parâmetros e o teste de hipóteses seriam formas de garantir que a realização possível satisfaz todas as sentenças da teoria?)
Modelos forneceriam predições quantitativas passíveis de teste por experimentos.
Citações de estatística matemática
Doob (1960, p. 27)
Modelo matemático como algo que se refere a um processo estocástico observado.
Hipótese de que o processo estocástico do modelo tem incrementos independentes. Papel das hipóteses na construção de modelos.
Para Suppes, este trecho confunde o que os lógicos chamariam de modelo com o que seria a teoria do modelo. Na estatística matemática e nas ciências comportamentais, é comum usar modelo para se referir ao conjunto de pressupostos quantitativos de uma teoria, isto é, o conjunto de afirmações que serviriam elas mesmas (ou uma formalização delas) como axiomas. Este uso de modelo é linguístico (posto que se refere a afirmações) e distinto daquele proposto por Tarski, que é uma entidade não-linguística em que uma teoria é satisfeita.
Citações de matemática aplicada
Greenspan (1973, p. 1)
A teoria discreta de modelos é fundada em uma forma da “heresia” matemática de negar o conceito de infinito.
Teorias com formalização standard
Uma teoria com formalização standard (ALMADA: por que não traduzir?) é uma teoria formalizada dentro da lógica de primeira ordem com identidade. Três tipos de constantes não-lógicas:
- predicados ou símbolos de relação;
- símbolos de operação;
- constantes individuais.
Numa teoria com formalização standard, parte-se de uma definição recursiva de termos e fórmulas a partir das constantes não-lógicas. Além disso, é necessário dizer quais fórmulas da teoria são tomadas como axiomas. De um ponto expressivo, são os axiomas que trarão o que uma teoria diz a respeito de seus objetos.
Suppes traz como exemplo a formalização de uma teoria $\mathfrak{O}$ de medição ordinal, que traz como constante primitiva não-lógica o relacional de dois lugares $\succeq$, com os seguintes axiomas:
- $(\forall x)(\forall y)(\forall z)(x \succeq y \land y \succeq z \implies x \succeq z)$
- $(\forall x)(\forall y)(x \succeq y \lor y \succeq x)$.
Seja $A$ um conjunto não-vazio e $\succeq$ uma relação binária definida em $A$. Então a estrutura $\mathfrak{A}=(A, \succeq)$ é uma realização possível de $\mathfrak{O}$. Então um modelo de $\mathfrak{O}$ será uma realização possível de $\mathfrak{O}$ em que os axiomas de $\mathfrak{O}$ sejam verdadeiros.
Na discussão em aula, levantou-se que este esquema é mais pensado em termos de teorias das ciências quantitativas, o que pode gerar dificuldades na representação de teorias interpretativas (e.g., psicanálise), ainda que esta não seja impossível. Já a noção de estrutura em si não é necessariamente quantitativa, abarcando também teorias de conceitos qualitativos. O corte quantitativo/qualitativo não deve, contudo, ser visto como uma oposição, mas sim como uma complementariedade (já que expressões quantitativas podem, em termos de fundamentos da matemática, ser expressas em linguagem conjuntista).
Teorias construídas axiomaticamente
Ao introduzir a necessidade de que os axiomas de uma teoria sejam válidos, Suppes introduz uma variação na definição de modelo de Tarski.
Uma teoria axiomaticamente construída é aquela na qual o conjunto de frases válidas é definido como um conjunto de axiomas dados da teoria junto com suas consequências lógicas.
Três tipos de questões sobre uma teoria, dos quais uma formalização standard não é necessária para examinar dois: a investigação a respeito das relações entre os modelos de uma teoria e das interpretações empíricas e testes da teoria. A formalização standard é necessária para o terceiro tipo (segundo na lista de Suppes), que inclui questões como a decidibilidade da validação de fórmulas da teoria.
Para Davidson, dentre outros comentadores, Tarski traria uma metateoria das condições que uma teoria da verdade deve satisfazer, que pode ser satisfeita por outras teorias além de uma visão correspondencial. ↩︎
Visão correspondentista como critério de justificação. ↩︎
ALMADA: estes experimentos seriam os geradores dos valores-verdade que um modelo lógico deve atribuir às frases que enunciam uma teoria? Em sala, levantou-se a discussão, também devida a Tarski, da noção de verdade como correspondência. ↩︎
Essa discussão, em suma, está ligada ao debate se a adequação empirica é o (único) critério para a aceitação de uma teoria, e qual seria o estatuto destas teorias: elas refletem o mundo ou são instrumentos úteis de predição? Concepção de Einstein de probabilidade como medida de ignorância seria mais difícil de reconciliar com estas abordagens probabilísticas do que, por exemplo, a visão também realista de Popper. ↩︎