Modelos: do descrédito à popularidade
Referência
BAILER-JONES, Daniela. “Tracing the development of models in the philosophy of science”. In: MAGNANI, L.; NERSESSIAN, N. J. & THAGARD, P. (eds.). Model-Based Reasoning in Scientific Discovery, pp. 23-40. New York: Kluwer / Plenum, 1999. Texto disponível no site da disciplina.
Nesta aula, abordaremos as duas primeiras seções do texto (pp. 23–31), em que a autora trata, sob uma perspectiva histórica, de uma guinada de perspectiva na filosofia da ciência: quando os modelos deixaram de ser figuras marginais e passaram a ser um assunto relevante.
Considerações gerais
Programa da Bailer-Jones busca estabelecer a importância de uma “epistemologia humanizada”, que parte da cognição em vez de estipulação de formas ideais de raciocínio, e será centrada no conceito e us odos modelos em ciência.
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Desprezo e descrédito dos modelos
Na seção 2, Bailer-Jones discute como autores fundacionais da filosofia da ciência (Duhem, Carnap e principalmente Reichenbach) atribuíam um papel marginal aos modelos.
Pierre Duhem
Teoria não seria uma explicação, mas sim um sistema de proposições matemáticas deduzidas de um pequeno conjunto de princípios, com o objetivo de representar leis experimentais.
A teorização seria a parte descritiva (e apropriada) do pensar científico, e, para Duhem, a construção de modelos seria uma parte explanatória que é “parasitária” no pensamento científico. O caráter parasitário surge porque modelos não seriam “necessários” para o pensamento científico, que poderia capturar o pensar abstrato presente nas teorias, sem precisar recorrer a explicações típicas de um “modo inglês”. Modelos seriam, então, um atalho indigno para chegar ao entendimento de uma teoria, distinta da verdadeira dominação dos fenômenos que resultaria da reconstrução teórica.
Para Duhem, o pensar com modelos parece inescapável, ainda que indesejado, o que leva à discussão de por que ele existe. Em discussão de sala, isso sugere que os modelos teriam um papel cognitivo que não é capturado pela imagem apresentada por Duhem.
É possível encontrar, em Duhem (Algumas reflexões sobre a física experimental, 1894), uma primeira forma mais fraca da tese da impregnação teórica do experimento, ideia que depois viria a ser desenvolvida por Hanson.
Em Algumas reflexões sobre as teorias físicas (1892), Duhem apresenta uma versão da tese do holismo no teste de teorias, entendidas como conjuntos de hipóteses. Isso desemboca em uma tese da inexistência de um experimento crucial para que uma teoria seja aceita ou rejeitada.
Para Duhem, teorias são uma tradução simbólica e abstrata dos fenômenos, com o objetivo de sumariar em um pequeno número de afirmações um grande número de fenômenos. Porém, apesar de as teorias serem instrumentos para a organização de predições, ao longo do tempo elas convergiriam para uma classificação natural. Ou seja, Duhem tenta conciliar uma visão instrumental com um convencionalismo, e até hoje há debate sobre essa conciliação entre os intérpretes.
Modelos, nessa perspectiva, seriam um peso morto explicativo que prejudicaria a elegância dos edifícios teóricos ao mesmo tempo que trazem compromissos metafísicos que Duhem preferiria não manter. Modelos explicativos deveriam ser descartados assim que possível, e Duhem escreve com virulência contra o que chama de escola inglesa na ciência, que pensaria em termos de modelos em vez de lidar com as abstrações que ele vê como o objeto próprio da análise. Ver A Escola Inglesa e as teorias físicas, em que os modelos são trazidos como exemplo central das diferenças entre o modo inglês de raciocinar, que seria muito mais ligado a minúncias concretas do que o raciocínio mais abstrato dos germânicos ou latinos.
Rudolf Carnap
Modelos possuem valor estético, didático ou heurístico, mas jamais são um ingrediente essencial para o êxito de uma teoria. De posse da teoria, seria possível prescindir dos modelos.
Hans Reichenbach
Separação forte entre contexto de descoberta e contexto de justificação, o que, para Bailer-Jones, envolve uma separação entre psicologia e lógica. Com esta separação, processos psicológicos e cognitivos não seriam um problema legítimo no campo da filosofia da ciência, que opera no campo da justificação racional do conhecimento.
Priorização dos aspectos de prescrição em detrimento dos aspectos descritivos da prática científica. A ideia de que o objeto da filosofia da ciência está no contexto da justificação persiste em Popper, e até em autores mais tardios, como Richard Feigl (1970: A visão ortodoxa de teorias).
Bailer-Jones usa com frequência “actual thinking” — três vezes apenas na página 26 —, o que sinaliza uma proximidade de perspectivas que se aproximem da prática científica.
Ramsay, citado no texto como crítico da visão de que os conceitos teóricos possam ser reduzidos a conceitos observacionais (p. 27), pode ser identificado como antecipando alguns elementos da metateoria estruturalista.
Popularidade dos momentos em filosofia da ciência
Para Bailer-Jones, há em torno dos anos 1950 um deslocamento dos questionamentos filosóficos para a prática científica, em potencial reação aos problemas com o projeto russelliano de reconstrução racional, e este deslocamento leva filósofos da ciência a dar maior atenção à noção de modelo.
Bailer-Jones destaca três autores como representantes primários deste momento (1953–1954):
Richard Braithwaite
- Concepção altamente formal de modelo, à moda do positivismo lógico
- Modelos como fonte de significação: suprem uma interpretação, ainda que parcial, para iniciar o movimento entre teoria e observação.
- Modelos podem ser interpretações até completas, mas não únicas, de teorias. Continuam, pois, a desempenhar um papel acessório.
- Reconstrução puramente lógica das teorias científicas levaria a
uma ossificação das teorias, que não dá espaço para a mudança teórica.
- Movimento de uma visão estática para uma visão dinâmica de teoria.
Ernest Hutten
- Necessidade de se observar o comportamento dos cientistas
- Não restringir ciência a um esquema pré-concebido
- Funções do modelo
- Lógica: mais do que representar, modelos explicam como algo acontece
- Normativa: modelos como ideal e paradigma
- Modelos como interpretações parciais
- Modelos não são (nem podem ser) verdadeiros ou falsos
- Modelos fornecem um universo de discurso
- Hutten combina aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos dos modelos
- Necessidade de se observar o comportamento dos cientistas
Mary Hesse
- Inclusão de casos históricos da utilização de modelos
- Modelos são análogos, e não descrições literais, da natureza
- Possibilidade de aspectos desanálogos
- Ampliação do conceito de modelo
- Não são apenas diagramas e representações visuais
- Formalismos matemáticos também podem ser modelos
- Hipóteses são fruto da imaginação criativa e não de uma máquina dedutiva
A apresentação dos três autores parece refletir uma gradação do mais positivista para o menos positivista. Contudo, os três autores possuem compromisso, ao menos neste momento, com uma visão hipotético-dedutiva de teoria, ainda que Hesse tome uma perspectiva mais próxima até do programa de Bailer-Jones em etapas posteriores da carreira.
Nos três autores, há a noção de modelo como uma ponte entre as abstrações da teoria e suas aplicações, que é pensado de maneiras distintas por cada um. Também todos concordam em ver modelos como ferramenta de interpretação, contribuindo para a aquisição de significado dos termos da linguagem científica.
Bailer-Jones, ao comentar a perspectiva de Brathwaite, aponta que ali um modelo, em contraste com uma teoria, já é um cálculo interpretado, que apresenta relação estreita com o domínio de investigação. É uma concepção mais formal de modelo do que as adotadas por Hutten e Hesse.
p.30: Hutten: uso metafórico (e não só analógico) de modelos.
Contraste entre a visão de Duhem (para quem os modelos teriam uma carga metafísica que não está presente nas teorias) e a visão moderna de modelos (segundo a qual estes teriam maior flexibilidade ontológica).
Comentários da autora
- Mudança propiciada pela necessidade de unir linguagem teórica e linguagem observacional
- Necessidade de lidar com a descoberta científica e a construção e mudança de teorias
- Um olhar mais voltado à prática científica